Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo. (Guimarães Rosa)
O mistério é aquilo que nos ataca em nossa fragilidade maior, a de não-saber. O homo sapiens não suporta o desconhecido, precisa vencê-lo a todo custo, desvelá-lo, colocá-lo a mostra. Por isto existe a ciência. A ciência moderna é nossa tentativa de dar resposta aos mistérios da existência. Porém, houve uma época em que o mistério tinha vida própria, ele se sustentava por si mesmo, não
precisava ser desvelado a todo custo. Era uma época em que a condição humana se relacionava com o desconhecido de tal forma que a própria essência do humano era o próprio mistério. Não faz muito tempo, algum pensador, do qual não me recordo o nome, afirmou: “ser humano é deixar-se fascinar pelo mistério”. Nessa época em que humano e mistério caminhavam juntos, também havia uma corrente da ciência que escapava aos padrões atuais e se fundamentava exatamente no mistério, a alquimia. As secretas e míticas transmutações minerais realizadas por Paracelso, Flamel, Bacon, Hermes Trismegistrus, entre tantos outros, até hoje, povoam o imaginário coletivo e inspiram obras literárias e artísticas.
Mas nem só de experimentação viviam os alquimistas. Alguns lançaram obras literárias em diversos gêneros, desde o epistolário até a escrita em túmulos. Tendo acesso à obra “Mysterium Coniunctionis” do psicanalista suíço C. G. Jung, percebi que a atividade poética alquímica é vasta e de muita qualidade. Os textos acompanham as convicções dos autores que transmutaram em poemas os paradoxos que compunham seu segredoso trabalho, dando vida aos mistérios que os acompanharam até a morte. Seguem alguns poemas alquímicos.
Epitáfio em um Túmulo de Bolonha
(Publicado pela primeira vez na obra Symbola Aureae Mensae, 1617, p.169)
Lucius Agatho Priscius
Não é nem marido, nem amante, nem parente
Não está triste, nem se alegra
Isto não é monumento nem pirâmide, nem sepulcro.
Ele não sabe a quem edificou (e o quê).
(Isto é um sepulcro que dentro não tem cadáver.
Isto é um cadáver que não tem um sepulcro por fora.
Mas cadáver e sepulcro são a mesma coisa).
No poema-epitáfio acima, o autor se posiciona mediante a morte (que é o fim de todos os mistérios) sem a soberba humana de se achar um ser privilegiado pelas “forças universais”. Ele Se coloca como parte do universo, e não como um ser fora dele. No mesmo sentido temos um epigrama do século XV, sem autor conhecido, compilado por H. Zimmer em 1944:
Não Sou homem – também não sou Deus nem duende,
Nem brâmane, guerreiro, cidadão ou sudra,
Nem discípulo de brâmane, nem pai de família, nem eremita na selva
Também não sou Nenhum peregrino a mendigar,
Minha essência é ser alguém que desperta para o que lhe é próprio.
Em outras palavras, por mais o homem nunca pode ser considerado um ser acabado, pronto. Somos o devir, um constante vir-a-ser ou a eterna busca pelo que há de singular em nós.
Para encerrar, ficam duas frases de autores modernos que servem para medir, acredito, nossa relação, ainda forte, com as concepções alquímicas e sua proposta de constante mutação, segredo e mistério.
“Dentro de nós existe uma coisa que não tem nome, esta coisa é o que somos” (José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira)
“O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.“ (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
Pax tecum amicis,
Até a próxima.
PS: Na imagem do post, retirada de um dos afrescos (ou painéis) da Catedral de Siena, temos Hermes Trismegistrus e seu mais famoso texto alquímico, a “Tábua Esmeralda”.