domingo, 10 de outubro de 2010

EU, QUE SÓ QUERIA COMPRAR UM VINHO

(...) e sua profissão o acostumara ao manejo ético do esquecimento.
Gabriel Garcia Máquez

Vivemos em uma época admirável. Duvida? É Possível encontrar um bom vinho francês, italiano, chileno ou português num supermercado de nome “Princesa” há duas quadras de sua casa. E isso sem ter de desembolsar algo que supere módicos 30 ou 40 reais. É ou não é uma época admirável?  Só que a mesma época que nos permite o encontro com os vinhos, muitas vezes, nos afasta das pessoas, até daquelas a quem amamos. Os vinhos são necessários, as pessoas imprescindíveis.

Foi por causa de um vinho que a revi. Era uma daquelas típicas manhãs de sábado carioca. Fresca e com pouca gente na rua. Precisava cLomprar uma garrafa para uma confraternização entre amigos, mais à noite. Desci a rua das Laranjeiras, a pé, como quem se adianta rumo a adega de um château na Borgonha. Já próximo ao Largo do Machado, caminhava distraído, ébrio pela música que o ipod, aleatoriamente, escolheu para mim. Carmina Burana de Carl Orff. É estranho como certas músicas tem a vocação para emoldurar momentos marcantes. Alheio a todo resto, ignorei aquela sensação que antecede aos grandes momentos da vida,  aquele suspiro que apelidamos de presságio. Ignorei, pois estava amando a minha distração. O momento da distração é quase como um transe. Hipnose? Esquecimento mor. E existe algo melhor do que esquecer?

Metáfora perfeita para o esquecimento
 Buzet-Sur-Tarn [21/05/10]
Esvaziei-me a ponto de quase não-estar, aproximei-me de não ser. A música era silêncio. Caminhava sem andar, olhava sem ver. Só ia. Eu era uma ópera barroca flutuando rumo ao Sendas. Nada poderia impedir o meu Nirvana. Mas o destino, inevitável alquimista das horas, a todo instante nos avisa: há coisas tão impossíveis de esquecer. Foi quando que, do nada, aquele rosto. O mesmo. Nove anos e era a mesma. Tão bucólica, tão mineira. Parecia passear na praça da matriz, em Santa Bárbara. Revolto na ebulição de centenas memórias ressuscitadas, gritei. Ela ouviu. Um abraço, máximo abraço. Tanta coisa pra dizer, mas ela não podia parar. Foram cinco minutos de amor recuperado. Pedi o telefone. Anotei. Disse tchau. Ainda vi quando ela se apressou pelas escadarias do metrô. Último aceno.

Já se passaram três meses. Não liguei. Vivo, atualmente, em um estado de felicidade milimétrica. Um passo para trás ou para frente pode significar o fim das consecutivas alegrias que tem me atingido, ainda que eu não tenha mérito para tanto. Talvez haja algum medo de deixar escapar tudo que está ao meu redor. Mas se é para arriscar, que seja com uma passo pra frente. 

Ainda naquela manhã, comprei o vinho. Um pinot noir uruguaio de 2004, que não recordo o nome. O tempo faz bem aos vinhos. As vezes faz o mesmo com o amor. Mas para alguém cuja profissão exige o manejo ético do esquecimento, o tempo é só um aliado no penoso processo de esquecer.  Amo mais o esquecimento que o próprio amor. À noite, enquanto refletia sobre o royal flush de copas que tinha na mão, contei a história para meus amigos. Conferi uma certa gravidade ao momento. Hermeticamente, brindamos ao esquecimento. Mostrei as cartas. Sorrisos. O mundo começava a voltar ao normal.

Agora, enquanto escrevo, volto a ouvir a opera magna de Carl Orff,. Salto logo para o décimo quinto movimento, Amor volat undique [O amor voa por toda parte]. Respiro a música. Deixo-me distrair. Escrevo sem meditar. Verba volat undique [as palavras voam por toda parte]. Recomeço a esquecer. Esquecer é causa eterna. Sigo. Eu, que só queria comprar um vinho.

***
Abraço,
Até a próxima!