sexta-feira, 29 de maio de 2009

PARA BELO HORIZONTE, COM CARINHO

“Belo Horizonte tem um visgo. Comigo, pelo menos, era assim: me apaixonava por um raiozinho de sol, um ventinho da avenida João Pinheiro, uma cicatriz num banco da Praça da Liberdade, pelas folhas secas da rua Alagoas, por umas iniciais na calçada da rua Sergipe, pela paz de certo quarteirão espichado ao sol de três da tarde, com o preguiçoso cocó-ri-có de uma galinha mineiríssima. Tudo são motivos para não mudar porque tudo são motivos de amor. Mas a gente muda e passa a amar outras coisas, sem esquecer as antigas.”
(Carlos Drummond de Andrade)


Belo Horizonte, quanta alegria tenho em te visitar. Quando subo a Praça do Papa e te vejo quase inteira, sinto uma emoção maior. A mesma que um filho sente, depois de anos afastado, ao avistar a casa de sua infância. Minha infância não te conheceu, foi menino em cidade pequena, a não muito distante Santa Bárbara, mas se minha infância te reconhece, querida Belo Horizonte, é porque você nunca perdeu sua vocação de roça. Lembra quando você era apenas um arraial? Você era conhecida Curral Del’Rey. Por que trocaram seu nome? Mas até que não é mal chamar-se Belo Horizonte.


Um dia decidiram que você seria Capital do Estado. Ouro Preto tinha muita marca do império português para o gosto dos republicanos mineiros. Uma Minas Gerais moderna, não caberia ali, era tanta história e estória acumulada. A capital tinha de mudar. Para onde?


Fico imaginando quando aqueles homens de finos bigodes, roupas alinhadas e sapatos brilhosos pisaram sua terra pela primeira vez. Aposto que meu conterrâneo, Afonso Pena, deve ter quase desistido de você. Todo aquele seu mato, aquela lama dos antigos brejos que beiravam a Serra do Curral, tudo aquilo devem ter causado uma péssima impressão naquele homem de idéias arrojadas e coração generoso e formado no Caraça. Dizem que ele quase desistiu, mas resolveu subir um pouco da Serra, quando pisou a terra que agora piso e te viu do alto, se apaixonou por ti. Afonso foi o primeiro apaixonado, depois dele tantos outros. Aarão Reis, Bias Fortes, Drummond, Olegário Maciel, Greta Garbo (que certa vez veio se esconder aqui), Juscelino, Célio de Castro, tantos, tantos. Nós todos que subimos e te olhamos do alto.


Você é a síntese do espírito de Minas. Quem nunca sentiu aquele ímpeto revolucionário que corria nas veias dos Emboabas e dos Inconfidentes, ao passear pela Praça da Liberdade? Poderá algum mineiro não recordar sua terrinha no interior, ao bater de longe a vista na Serra do Curral? Essa serra nos dá uma sensação de proteção tão grande. Somos povo desconfiado, não muito afeito a se mostrar, e estar rodeado por esta nossa querida serra nos faz bem, cria a sensação de que estamos protegidos e de que nada de mal poderá acontecer para quem vive aqui. A serra nos ajuda a guardar nossos segredos.


Tanta coisa pra dizer, tanta saudade acumulada querendo dizer algo. Mas mineiro nunca conta tudo. Sempre fica um pouquinho escondido, uns breves mistérios que a gente se permite. E é esse mistério que todo mundo leva quando se despede de você, querida Beagá.








Pax Tecum amicis




* A foto da postagem foi tirada ontem, do telhado da casa onde estou hospedado, no Bairro Jaraguá. A Música do vídeo é da banda belorizontina Tianástácia.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A "ROSA NOTURNA" QUE BROTOU NO LIMBO

Falta-me tudo, enfim, nesta agonia;
só não me falta esta saudade imensa
que é meu sangue e meu pão de cada dia!
(Orlando Cavalcanti)

Orlando Cavalcanti é mais um daqueles grandes poetas que não tem vasta biografia na Wikipédia, mas merecia. Em 2010, alguns poucos estudiosos da literatura farão memória de seu centenário. Não sairá um caderno especial sobre ele na Folha de São Paulo, talvez o Estado de Minas, jornal ao qual dedicou boa parte de sua vida profissional, imprima uma pequena nota. Nada mais que isso.
O poeta nascido em Formiga, no sul de Minas, tem vários motivos para frequentar o estado límbico de esquecimento que a memória coletiva nacional costuma reservar aos que não são (foram) incensados pela mídia. Aqui destacamos dois. O primeiro diz respeito à sua pouca produção literária, sua obra resume-me a dois volumes esgotados há décadas no mercado das letras, Os Insurrectos (1944) e Rosa Noturna (1955). Morto em 1982, Cavalcanti dedicou a maior parte de sua produção em letras ao jornalismo e ao ensaio crítico, dando a entender que sua poesia era quase que um passatempo, e a história, salvo raríssimas exceções, não perdoa os poetas de ocasião. O segundo é menos objetivo, porém plausível, o fato de Cavalcanti não ter nascido naquele espaço mineiro que Affonso Ávila nomeou “Ilha Barroca”, ou seja, aquele espaço poético-epírito-simbólico das Minas Gerais dos antigos ciclos do ouro e do diamante, fez com que sua poesia estivesse mais ao estilo de um Vicente de Carvalho, poeta plasmado ao modo paulista, rígido na forma e no pensamento, do que próxima de seus contemporâneos mineiros como Henriqueta Lisboa, Drummond e Murilo Mendes, poetas cultivados sob a herança comum dos cantos nas igrejas barrocas, das explosões nas minas de minério e da força que sobrou ao espírito centro-mineiro após a guerra dos Emboabas. O estilo do nosso Orlando estava próximo demais de uma Minas que não lhe pertencia e muito longe de uma São Paulo que não lhe conheceu.


Da vida me desiludo
Ao ver um contraste assim:
Por que você que tem tudo na vida
Não tem saudades de mim?


Seu livro de maior destaque, Rosa Noturna, assemelha-se a uma compilação de poemas escritos ao longo da vida, não contém uma linha de ação poética clara, são sonetos, trovas, e poemas de verso livre organizados com o cuidado de uma antologia. Apesar de ter sido lançado no período áureo da poesia nacional, no tempo em que o modernismo já tomava ares de antigo e o pós-modernismo ainda estava por ganhar um corpo que o assim definisse, esta Rosa Noturna de Orlando Cavalcanti insurgiu como uma espécie de elo perdido do romantismo, que se findara meio século antes de seu aparecimento. Talvez seja esta a maior virtude da Rosa Noturna, o de ser um farol romântico em meio ao lusco-fusco que é comum a todo período transitório. Encerramos aqui, na esperança de trazer alguma luz à obra deste nosso outro poeta obscurecido, e que o soneto “Desalento” nos ajude nessa empresa.

Falta-me tudo agora, falta a crença
no que viria em halos de esplendor.
Falta o clarão da lâmpada suspensa
iluminando os meus serões de amor.

Faltam risos e afagos, recompensa
à brandura de seda do pastor.
Mãos que colheram lírios de Florença
já não podem colher nenhuma flor.

Falta-me a luz dos olhos, refletida
ao suave encantamento da presença
da vida que foi sombra de outra vida...

Falta-me tudo, enfim, nesta agonia;
só não me falta esta saudade imensa
que é meu sangue e meu pão de cada dia!


Pax Tecum Amicis
Até.
***
A imagem do post (Eleven A.M., 1926) é de autoria do pintor americano Edward Hopper, conhecido como "o pintor da solidão urbana". Esta moça nua, olhando com certa melancolia pela janela, é a melhor imagem que encontrei para os últimos versos do poema Desalento, "falta-me tudo, enfim, nesta agonia...".