quarta-feira, 21 de outubro de 2009

LEVANTANDO DO CHÃO

É claro que a vida é boa
e a alegria, a única indizível emoção.
(...) tenho tudo para ser feliz.
Mas acontece que sou triste.
*
"Dialética", Vinícius de Moraes
***
A vida é feita de alegrias e tristezas, não é segredo. Ninguém pode escapar a esta verdade. A felicidade e o sofrimento nos ajudam em nosso processo de humanização, por que é exatamente por estes sentimentos que nos diferenciamos da massa dos outros seres viventes e nos diferenciamos uns dos outros também. Cada um lida com sua alegria e com sua tristeza de formas diferentes. Tomemos a tristeza, ela que, mormente, tende a nos comover mais – tanto a dor nossa, quanto a dos outros sempre nos sensibiliza alguns palmos além do que qualquer alegria. Isso ocorre, talvez, pelo fato de que entendemos a alegria e a felicidade como estados em que desejamos permanecer, nos preparamos o tempo todo para viver em constante alegria. Nem sempre dá certo. A dor nos comove mais porque ela é fruto do inesperado, do não planejado, do erro, a tristeza é sempre um estado do qual desejamos escapar.

Cada um lida com sua dor e com sua tristeza de maneira diferente. Há o caso clássico daqueles que se entregam às drogas, sejam lícitas ou ilícitas, na tentativa de escapar muito rapidamente da realidade por meio de uma ilusão passageira, da qual vai se sentir cada vez mais falta e, para tantos, significa um caminho sem volta. Existem também aqueles que buscam alento no ombro de amigos, choram as dores, pedem conselhos (nunca os acolhem), expurgam seus demônios e no fim acabam por expurgar os demônios alheios também – porque todo mundo tem os seus, até o amigo que agora te consola. Outra classe é a dos solitários. Estes são os que mediante ao sofrimento, preferem volver às suas próprias entranhas, buscando na solidão (ou na companhia de si mesmo) uma resposta à sua dor.

Ainda há centenas de outras formas de lidar com a dor. Ler, escrever, dançar, jogar futebol, pular de um abismo, subir uma montanha, ir a uma festa, dar uma festa, cantar, viajar, rezar, acertar a sena, dizer “oi”, ouvir “oi”, soltar pipa, dirigir a 200 por hora... na verdade são milhares as formas de escapar do sofrimento, porém, salvo uma ou outra exceção, todas as formas são variações das três primeiras citadas. Alucinação, consolo e solidão.

A literatura, as artes plásticas, a música, a ciência e tantos outros campos de ação humano, devem algumas de suas maiores realizações à dor (seja na tentativa de descrevê-la ou na tentativa humana de escapar dela). O próprio título desta postagem é retirado de uma obra cujo tema é a dor de todo um povo, oprimido por uma minoria. “Levantando do chão” é um clássico do português Saramago.

Quando o amor era a causa da sofrimento (quase todos os sofrimentos são por amor) já tivemos clássicos literários como “O amor nos tempos do cólera”, do colombiano Gabriel Garcia Marquez; telas magníficas como “O ciúme” do norueguês Edvard Munch; e mesmo a arquitetura já produziu maravilhas planejadas em meio a lágrimas e soluços de dor, como o Taj Mahal na Índia e algumas das Pirâmides do Egito. Eis a questão vital: o que faremos de nossa dor? Nos embriagaremos ou construiremos palácios?

Para encerar, um trecho do poema “If” (em uma tradução minha, bem alternativa) de autoria do poeta britânico nascido na Índia Rudyard Kipling (1865-1936).

Se você é capaz de arriscar num único lance
Tudo o que ganhou em toda a sua vida, e perder...
E, ao perder, sem cair no planto ou em lamentos,
Resignado, voltar ao ponto de partida;
Se você é capaz de forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta uma vontade em você que ainda ordena: "Persiste!"


Pax vobiscum amicis.
Até Breve.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A CURA PELA ARTE

Eu não pinto coisas. Pinto a diferença entre coisas.

Henry Matisse



Na Folha de São Paulo de ontem (30/09/2009) foi publicado um dos mais impressionantes textos publicitários que já li. Uma página inteira, do caderno Ilustrada, nos convidando para conferir a exposição das obras do pintor francês Henry Matisse, na Pinacoteca do Estado. Mais do que uma simples propaganda, o texto é uma reflexão sobre a vida contemporânea e sua rispidez, secura e feiúra. Vivemos em um mundo que se organiza de tal forma a ser o contrário da arte, caracterizada principalmente pela leveza, liquidez e beleza. O texto da propaganda é mais do que um convite a uma exposição específica, é um convite a visitarmos à arte e nos relacionarmos por meio dela. Porque uma conversa sobre os quadros de Matisse, Picasso, Van Gogh, Portinari ou Guingnard deveria ser, cotidianamente, assunto nosso tanto quanto dinheiro, trabalho, sexo e futebol.
Segue o texto, na íntegra. Acredito que todos nós, os massacrados pela insensatez das impossíveis grandes cidades, nos identificamos com várias das situações descritas pelo anônimo autor.

***

Aos que estão cercados de cinza por todos os lados.
Aos que estão rodeados de computadores, esverdeando dentro de escritórios.
Aos que estão parados, ladeados por carros num trânsito dos infernos.
Aos que estão encaixotados dentro de elevadores.
Aos que estão isolados por paredes, curando-se de gripe suína.
Aos que estão espremidos dentro de conduções.
Aos que estão cercados de carteiras, focados numa grande lousa.
Aos que estão desaparecendo dentro de uma fina garoa.
Aos que estão sendo consumidos por sofás.
Aos que estão completamente cercados pela pressa.
Aos que estão totalmente possuídos por multiplicar dinheiro.
Aos que estão rodeados por santos e rezas.
Aos que estão absorvidos pelo desejo de vingança.
Aos que estão cercados por recém-nascidos berrando em suas pequenas camas de acrílico.
Aos que estão no meio de uma confusão que não lhes diz respeito.
Aos que estão cercados por comprimidos.
Aos que estão rodeados por assombros.
Aos que estão dominados pela fúria.
Aos que estão rodeados de enormes vitrais com um rodinho e sabão.
Aos que estão comprando a idéia de uma sociedade de consumo.
Aos que estão observando os fumantes consumindo suas ampolas fora de estabelecimentos.
Aos que estão tensos numa pequena sala que antecede a entrevista de emprego.
Aos que estão cercados de tristeza e de entes queridos num cemitério.
Aos que estão rodeados de madames mal-educadas numa lavanderia.
Aos que estão em seus casulos, protegidos por enormes cercas elétricas.
Aos que estão com a cabeça em parafuso.
Aos que estão prestes a fazer um pedido de casamento.
Aos que estão rodeados por advogados numa audiência de separação.
Aos que estão cobertos por jornais, dormindo em bancos.
Aos que estão no centro de uma roda de contas a pagar.
Aos que estão tendo seus pulmões consumidos por gases de álcool e gasolina nos postos das esquinas.
Aos que estão desistindo do convívio humano e se cercando de animais de estimação.
Aos que estão rodeados do prazer de dizer que estão faltando alguns documentos.
Aos que estão cobertos de medo do pânico.
Aos que estão querendo trocar de sexo.
Aos que estão tomados por tristes lembranças da infância.
Aos que estão sobrecarregados pelo esforço de puxar carroças pelas ruas.
Aos que estão rodeados de enormes labaredas, tentando contê-las com mangueiras.
Aos que estão cercados e sendo consumidos pelo cotidiano tolo.
Aos que estão cercados de segredos.
Aos que estão cercados pelo sentimento de culpa.
Aos que estão no centro de uma importante questão.
Aos que estão cobertos de graxa embaixo dos eixos dos veículos.
Aos que estão cercados de tapinhas nas costas.
Aos que estão acabrunhados porque levaram um pé na bunda.
Aos que estão acobertados por um disfarce.
Aos que estão cercados de teorias.
Aos que estão envoltos em mentiras.
Aos que estão cercados de bisturis, sendo abertos em mesas cirúrgicas.
Aos que estão atarefados com os afazeres domésticos.
Aos que estão cercados por gerúndios em telefones.
Aos que estão rodeados por máquinas barulhentas, perdendo a audição.
Aos que estão sedentos por sentir algo.
Aos que estão cercados por familiares, lutando contra um vício.
Aos que estão certos de não crer em nada.
Aos que estão construindo um corpo escultural e esquecendo da mente.
Aos que estão cheios de não me toques.
Aos que estão perdendo a razão.
Aos que estão cercados por um império, perdendo a noção de valores.
Aos que estão aqui somente para criticar.
Aos que estão consumidos pelo desejo de voar.
Aos que estão sucumbindo à corrupção.
Aos que estão sendo corroídos pela depressão.

A todos vocês, a luz e as cores de Matisse.

A todos vocês e mais aos esquecidos.

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Primeira exposição individual de Matisse no Brasil
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Até 1º de novembro de 2009

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Pax Tecum amicis