quinta-feira, 23 de setembro de 2010

2010: o ano da dupla primavera

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
Cecília Meireles

Este ano, por causa de uma feliz concatenação de fatos, terei a sorte de caminhar entre duas primaveras. Entre março e junho vivi a primavera do hemisfério norte, estudando em Paris. Hoje começa a nossa primavera tropical, e cá estou eu, pelejando minha arte no Triangulo Mineiro. Dois mil e dez, o ano da dupla primavera.
Tulipas nos jardins de Notre Dame. Paris, abril de 2010
Em cada canto do mundo, a estação das flores nos comove de maneira própria singular. A primavera boreal nos oferta cerejeiras, tulipas e margaridas. Já a austral costuma nos brindar com ipês, lírios e gardênias. Seja onde for, ela é uma mensagem sazonal  de alegria. Por sorte muita gente a compreendeu e deixou florescer em si, as pétalas de inspiração que ficaram imortalizadas em versos, canções e pinceladas. Das quatro estações, a mais retratada. Das quatro estações, a mais poetizada. Das quatro estações, a mais cantada.

Cerejeira. Taizé, abril de 2010
Por encanto primaveril, Neruda imaginou seus mais belos versos."Te trarei das montanhas flores alegres,/copihues, avelãs escuras, e cestas silvestres de beijos.Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras"Ao ver a explosão anual das flores, Vivaldi convocou os violinos celestes, para compor a mais bela peça das Quatro Estações. No mais prodigioso quadro de Botticelli, as Graças, Hermes e Vênus dançam a alegria de mais um equinócio da primavera boreal.  Foi à primavera, que Cecília Meireles ofertou sua mais bela crônica. Era nessa época que Van Gogh saía pra pintar ao ar livre. Jorge Luís Borges, mesmo cego, intuía flores pelo cheiro, por isso amava, mais que qualquer outro, a estação da deusa Ostara. E se há alguma tristeza em nosso coração, é só ligar o som e colocar pra tocar "you can never hold back spring"[click para ouvir], do Tom Waits, pro mundo virar outro.

Primavera. Sandro Botticelli, 1492.
Assim segue a primavera, iluminando plantas, bichos, deuses e homens. Aproveitemos a inspiração possível. Deixemos florescer em nós este sentimento primaveril. Tenhamos flores conosco. Nas mãos, na cabeça e no peito.

Pax Vobiscum amicis
Até a próxima


P.S.: Muitas imagens neste post. Porque a primavera, muito mais do que ser explicada, merece ser vista, contemplada e vivida.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

ARREBOL


A mais honrosa das ocupações é ser útil ao maior numero de pessoas possível.
Michel de Montaigne

O lugar
Um dia você acorda no meio de uma megalópole, como escrevi na postagem anterior, já noutro dia você acorda no meio do sertão. Em uma palavra: choque. Desaparecem o asfalto, as buzinas, todas aquelas infinitas possibilidades de encontros e programas. No lugar está a poeira da estrada, pavimentada somente por cascalho, o grito desesperado dos galos matinais e uma rotina que não permite muitas alterações. Todo dia os mesmos caminhos, as mesmas pessoas, os mesmos trabalhos. Mas não é uma rotina semelhante a da cidade, tudo é mais natural e espontâneo. A impressão que tenho é que a aqui o mundo acontece e a gente é parte dele, não é um mundo criado por nós, é um mundo do qual participamos, como coadjuvantes já muito acostumados com seus mínimos papéis.

Revoada de Concrizes, será que vai chover?
Como na cidade, há perigos. Se por um lado não é preciso trancar portas, por outro, sempre que for se vestir é preciso conferir as peças de roupa, os calçados e tudo mais para escapar de possíveis animais peçonhentos. Há muito sol e pouca água. O chão é seco e difícil de plantar. O trabalho de cultivar aqui é quase que dobrado. O outro nome do sertão é desafio. Este lugar desafia as pessoas a viverem aqui. Estamos, todo o tempo, armados para um duelo.


O povo
A primeira impressão do povo sertanejo é de que as pessoas daqui são quase tão secas quanto a terra. Poucos olhares, muitos silêncios,   prosa rara. Ledo engano. Coisas de primeiro e inocente olhar. De fato, eles são como a terra, aparentam secura, mas se você faz o mínimo esforço de cultivar, tudo nasce. Com as pessoas daqui é a mesma coisa. Só que pessoas não se cultiva, pessoas a gente cativa. E se deixa cativar por elas também. Euclides da Cunha insistia que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Verdade. Aprofundando, também é sábio, contador de “causos”, moroso, bravo, impiedoso com os inimigos, rancoroso e santo.

Sol a Sol
O dia começa cedo. A gente acorda lá pelas cinco e meia, vencidos pela insistência da orquestra de galos. Tomamos um gole de café, aproveitamos que o clima ainda está fresco e partimos para a jornada. São oito quilômetros do vilarejo até a roça que cuidamos. Eu faço o caminho de bicicleta. Na estrada, quase todos vão de moto. Ainda há os que vão a cavalo, muitos a pé e uns raros, muito raros, que tem alguma camionete, charrete. Vamos juntos, trocando cumprimentos, seguindo um trecho de estrada juntos, compartilhando o nascer do sol com passarinhos, vacas, capins, aroeiras e poeira.

Fogão da Nice, feijão e galinha d'angola
Chegando na roça, antes de começar a lida,  é  sempre bom ir nos vizinhos que tem casa por lá. Lá está o café mais reforçado. Na casa de seu Joaquim Branco, sempre tem café ralo e alguma quitanda boa. Tapioca, em geral. Na casa de dona Nice, café forte e bolacha comprada na rua. Alimentados, vamos a lida.

Trabalhamos em torno de um grande açude. Nossa missão: reflorestar. Há muito por fazer. Mais de oitenta por cento da mata já virou carvão. O que resta, segue o mesmo destino. Ali, bem próximos a água, fazemos mudas. Já temos muitas. Mudas de tudo quanto há de árvores nativas. Leucena, ipê amarelo, pau-pintado, angico, tambaqui [que eles não gostam, porque as vacas comem e abortam], cedro, sucupira, tantas. Frutíferas também. Mil mudas. Distribuição gratuita. E é bom ver que tem gente querendo plantar.

Há quem queira parar com o carvão para começar com agricultura. Poucos. Melhor que nada. Já tem gente plantando horta, onde achava que hortaliça não nascia. Dá gosto de ver. Cresce uma ponta de orgulho. Dá uma vontade de continuar.

Vamos trabalhando. Dá quatro da tarde, o sol mais baixo. Rumamos pra casa. O mesmo caminho, as mesmas pessoas, quase sem novidades. Talvez um futebol no campinho. Depois, banho frio. Jantar. Casa dos vizinhos. Muita prosa: o preço das coisas, eleições, quando vem a chuva, campeonato brasileiro e do gol perdido na pelada de agora a pouco. Falamos de tudo que cabe. Enfim, muitos "causos". Muitos mesmo. Sempre tem um bom. E quando há o silencioso consenso coletivo de que um certo caso foi bom, vamos dormir. Amanhã o dia começa cedo.
Arrebol vespertino no Sertão [05/09/10]
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Livros que tem me ajudado
Manual do Arquiteto Descalço, Johan van Lengen
Obra Completa, Paul Verlaine
Ensaios, Michel de Montaigne
Guia Ilustrado Zahar de Astronomia,  Ian Ridpath
O livro de São Cipriano, o Bruxo
Abre a Porta: Cartilha do Povo de Deus, Diocese de Caratinga
Vidas Secas, Graciliano Ramos




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Abraços,
Luz na Caminhada.