segunda-feira, 24 de maio de 2010

UMA TEMPORADA NO INFERNO

Uma noite, fiz a Beleza sentar no meu colo. E achei amarga. Injuriei.
[Arthur Rimbaud]

Faz mais de dois meses que escrevi aqui pela última vez. Bem sei que esta não é uma boa postura para aquele que deseja manter um blog. Porém, os dois ou três que me acompanham vão se lembrar do meu último texto, “Encruzilhada”, no qual eu falava sobre a necessidade humana de tomar decisões e sobre as decisões que realmente são definitivas. Bem, minha ausência se justifica por isto, estava em um momento de encruzilhada, sem saber para onde ir. Até que decidi descer aos infernos.

Lançando mão da mais simples das metáforas, nossa vida é toda organizada para que alcancemos o céu. Não o céu prometido pelos cristãos e muçulmanos, em um ainda desconhecida eternidade pós-morte, mas o céu do bem estar, da felicidade e dos prazeres possíveis nesta perigosa empresa a que chamamos vida. Quando, nalgum momento alguém chega a dizer, “minha vida está um inferno”, esta pessoa está no limite do mal-estar, da infelicidade e do desprazer. Em regra, buscamos o céu e temos horror ao inferno. Dedicamos boa parte de nossas forças vitais no caminho em direção ao tão esperado céu, enquanto tentamos escapar aos consecutivos infernos que se nos apresentam.


No meio da minha encruzilhada, escolhi seguir o caminho que me levaria diretamente ao inferno. Um caminho que já no pórtico se mostrava pedregoso, árido, sinuoso e longo. Fiz esta escolha inspirado em Ulisses [de Homero], o primeiro grande herói da literatura ocidental, que só teve forças para continuar sua inescrutável jornada depois de ter visitado os infernos. Lembrei também de Rimbaud, que depois da sua “temporada no inferno”, fez com que sua poesia atingisse contornos divinos. E até o próprio Jesus, segundo a tradição cristã, passou três dias no inferno antes de sua ressurreição.

E agora, já depois de ter descido aos infernos, aqui estou eu. Vivo. Mais forte. Ainda não cheguei ao meu céu, mas depois de ter passado pelos nove círculos infernais de Dante, me sinto mais próximo dos Campos Elísios. Aprendi a ir ao inferno em busca de respostas [com Ulisses], aprendi a fazer poesia no inferno [com Rimbaud] e a voltar com uma nova vida de lá [com Jesus de Nazaré]. Outros infernos virão, tantos céus serão desejados.

O que digo agora é que entre o caminho do céu e do inferno, sempre escolherei o do inferno. Porque, como o primeiro raio de sol depois de uma tempestade, o céu que vem depois do inferno, acreditem, é o mais alto dos céus. Porque, "à aurora - das mais escuras das noites escuras - revestidos de ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades" [frase extraída do imaginário diálogo espiritual entre Rimbaud e São João da Cruz].

Pax vobiscum amicis,
Até a próxima.








[Foto: um momento de oração em Lourdes, França]

terça-feira, 16 de março de 2010

ENCRUZILHADA


O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

[Fernando Pessoa]

Não há como escapar, dado que somos seres de infinitas possibilidades, nossa vida nada mais é do que o resultado de nossas consecutivas escolhas. São as opções que nos matam. Há quem perca horas escolhendo a roupa para sair de casa. Na bolsa de valores, há quem decida o destino de milhões de dólares em segundos. E ainda há a noiva indecisa na hora do “sim”, já no altar; o goleiro, diante do pênalti; o suicida, no alto da ponte; o enxadrista, posto em cheque pelo computador; ou mesmo o santo, convidado a negar sua fé ante o carrasco.

Das mais simples às mais complexas, toda escolha tem o poder de mudar a nossa vida. Talvez o mais triste seja saber que ao termo de uma escolha, todas as outras possibilidades relacionadas a ela, cessem naquele instante. Talvez essas possibilidades ressuscitem nalgum momento futuro, mas o momento da escolha é o momento da morte de todas as possibilidades não escolhidas. Por isso vivemos um eterno luto pela morte da vida que não tivemos.

Todo dia me arrependo de centenas de escolhas que fiz. Não sou hipócrita a ponto de afirmar que, ao rever a minha vida, faria tudo igual de novo. Se pudesse mudaria um monte de coisas das quais não me orgulho de ter feito, participado ou escolhido sem a devida reflexão necessária. Eis o ponto, refletir sobre as escolhas é fundamental. A reflexão não garante sucesso ante uma escolha, porém garante a dignidade de no futuro, mesmo ante uma escolha incorrigivelmente desastrosa, imaginar que, naquele instante da peleja, ela era a mais plausível entre todas as outras.

Hoje estou numa encruzilhada. Como todo mundo um dia já esteve, como todo mundo um dia vai estar. Só queria um pouco da coragem daqueles navegadores ibéricos que, sob as bandeiras de Portugal e Espanha, escolheram enfrentar os temidos monstros e abismos de além-mar. A humanidade aprendeu com eles que uma atitude corajosa pode receber a recompensa de um Mundo Novo. Hoje preciso da sorte de um Cristovão Colombo, que errou um caminho e achou o eldorado americano; da firmeza de um Fernão de Magalhães, vencedor dos mais sangrentos motins; e da sagacidade de um Diogo Cão, homem que nunca esqueceu de deixar seus marcos onde foi preciso escolher. De todos eles quero a coragem para, a revelia de qualquer escolha, seguir em frente.

Este é o momento de deixar o atual padrão e para adiante navegar. Será?

Fica o poema “Padrão” do homem que escolheu ser poesia, Fernando Pessoa, cantado pelo homem que escolher ser música, Caetano Veloso.




Pax Vobiscum Amices

Até a próxima.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O PESO NO CORAÇÃO DE J. D. SALINGER

O homem imaturo é aquele que quer morrer gloriosamente por uma causa. 
O homem maduro contenta-se em viver humildemente por ela.
[J. D. Salinger]

Morreu Jerome David Salinger. Morreu na quinta passada, 27 de janeiro, quando eu ainda estava cumprindo minha odisseia sertaneja no Vale do Jequitinhonha, em Minas. É Estranho chegar em casa e saber que alguém que se admira tanto tenha falecido e o assunto, de certa forma, já está frio, ou morto. Mas este blog não pode abrir mão de algumas linhas em respeito àquele que é um dos secretos patronos deste espaço.
*
Não sou da geração que leu J. D. Salinger com surpresa, ou mesmo da geração que salingerse espantou com seu modo de vida. Quando conheci a obra de Salinger, “O Apanhador no Campo de Centeio” já alcançara o panteão da literatura como clássico irrefutável e sua vida de eremita já não era motivo de surpresa para ninguém. De Salinger, o que mais marcou a minha geração foi o mistério. Qual peso aquele homem traria no coração para se isolar tão radicalmente da multidão dos outros?
*
Todos nós precisamos de algum período de solidão. Quem nunca exclamou à irritante presença de outrem: “quero ficar sozinho!”. Lembro-me de um verso do poeta maior da lusofonia, o universal Fernando Pessoa: “Vão para o diabo sem mim,/Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!/Para que havemos de ir juntos?”. Quase posso ouvir J. D. Salinger repetindo este verso, como um mantra, em seu casebre montanhês de New Hampshire, “para que havemos de ir juntos, para que havemos de ir juntos...”.
*
Tanta coisa já foi escrita sobre a morte e a vida de Salinger, que não pretendocatcher me estender nesta postagem. Perdemos um dos últimos autores de algum clássico literário, só isso já bastaria dizer sobre ele. Lembro-me de uma comparação que li no Estado de Minas, por ocasião de um aniversário de publicação do “Encontro Marcado” de Fernando Sabino. O texto colocava as duas obras em pé de igualdade, não em termos de literatura, mas no que tange à influencia que estas obras foram capazes de exercer em consecutivas gerações de jovens. É incrível como estes dois romances povoam o imaginário de tão diversos grupos há tanto tempo. Li e amei as duas obras, porém sempre preferi o solipsismo debochado de Holden Caulfield à boemia intelectual do nosso Eduardo Marciano.
*
Adeus Salinger, você vai, mas fica o peso do seu coração.
*
***

A leitura de “O apanhador no campo de centeio” é, sem sombra de dúvidas, a mais importante de minha juventude. Tanto que na época, ainda na fina flor da juventude [tinha dezoito anos], escrevi um poema sobre Holden Caulfield, protagonista do clássico de Salinger. Cheio de vergonha, partilho o texto agora. É minha pobre homenagem a Salinger.


***


Holden Caulfield
Holden Caulfield não gosta de praticamente ninguém
Mas quando gosta é de verdade
.
Holden Caulfield não é de jogar conversa fora
Mas sempre quer ter alguém para conversar


Holden Caulfield não nasceu para bajular
E se bajula, é porque a pessoa merece


Holden Caulfield mente compulsivamente
Mas só conta mentira quando é necessário


Holden Caulfield é muito mulherengo
Pelo que sei só ama uma mulher


Holden Caulfield não gosta de estudar
Mas só porque na escola todos são uns chatos


Holden Caulfield adora fumar, beber, e se divertir até tarde
Mas só porque é menor de idade
.
Holden Caulfield é um cara meio estranho
Mas só aos olhos de quem é “normal”


Holden Caulfield só quer uma cabana na floresta
Um emprego num posto de gasolina, porque é só isto que lhe é necessário
.
Holden Caulfield só quer que todos lhe esqueçam
Pelos menos por algum tempo
.
Holden Caulfield só quer ser
The Catcher in the Rye, assim como eu


***

Pax Vobiscum Amicis
Até a próxima!

sábado, 2 de janeiro de 2010

MÍNIMA RESTROSPECTIVA LITERÁRIA [2009]

Em 2009 não tive lá muito tempo para ler. É triste dizer isso, porém é a dura realidade de quem apenas sonha ser um leitor em tempo integral. Acho que ninguém é isso, leitor em tempo integral, nem mesmo aquelas pessoas abençoadas as quais foram confiadas nossas bibliotecas. Quando adolescente sonhava ser bibliotecário, vivia em bibliotecas tentando desvendar os mistérios daqueles números e letras pregados com papel adesivo na lateral dos livros. Bastava olhar para o meu quarto para saber que eu nunca seria bibliotecário. Outras paixões vieram. A filosofia, a educação, a religião e, por fim, a área social. Todas essas atividades exigiram que eu permanecesse em constante estado de leitura. Tinha de ler sempre, mas tudo muito voltado para o trabalho, quase nunca podia me dedicar a minha verdadeira paixão, a literatura.
No ano passado, bati meu recorde negativo de leituras literárias. Li apenas cinco livros completos [para quem lia pelo menos dez por ano, é uma queda considerável]. E esta postagem é para fazer o resumo de minha pobreza. Como disse li cinco, mas só posso recomendar três. Dois deles não ousarei recomendar. Saramago me decepcionou em seu elogiado “A viagem do elefante”, achei uma história arrastada e sem brilho [acho que isso acontece porque a gente sempre espera muito de alguém que escreveu mais de uma mão cheia de clássicos]. Já a releitura do “Ulisses” de James Joyce outra vez me causou tanto espanto ante àquelas geniais descrições do nada, que não consigo escapar do sentimento de impotência para escrever sobre. Restaram-me três leituras para comentar, dois romances e um livro de poesia.
Comecemos pela poesia. No natal passado ganhei uma edição bilíngue do surpreendente “Os animais evangélicos e outros poemas” de D. H. Lawrence. clip_image001O livro de uma coerência literária que raras vezes notei em um volume de poesias. É como se as dezenas de poemas que ali estão, quisessem nos contar uma única história. A história do acelerado progresso da humanidade no século XIX, sobre como esse progresso tecnológico, político e social tem nos tornado cada vez mais autônomos e consequentemente sozinhos. Toda a tecnologia, que deveria servir para nos aproximar, diminuir fronteiras melhorar nossa vida, tem feito exatamente o contrário. Cada vez nos relacionamos menos, e quando nos relacionamos é tudo tão vazio. Chegamos ao nível no qual das relações pessoais são quase desnecessárias, e quando acontecem, na maioria das vezes, são conflituosas e fugazes. Essa crítica é tão comum que todos já estamos cansados dela. O que impressiona na obra de Lawrence é que ele não se posiciona contra o modelo atual de sociedade, ele também não o admira. Ele apenas acredita que é uma escolha coletiva que fizemos. Seus poemas, repletos de metáforas e imagens desconcertantes, “da minha parte, prefiro que meu coração se despedace” [p. 51] ou “todos os frutos tem o seu segredo” [p.59], mostram que a poesia também pode ser realista, contundente e sem o romantismo da esperança-cega. Recomendo “os animais evangélicos e outros poemas”, mas com um alerta: prepara-se para perceber o quão “demasiado pequeno és ante ao vento que te arrasta” [p. 47]. Que vento é esse? O vento do tempo. Não o tempo das horas, dos meses e dos anos, mas o tempo que passa sem que possamos contar, aquele tempo do qual sempre sentimos falta e nunca sabemos qual é.
clip_image003O segundo livro que completei no ano foi “As revelações picantes dos grandes chefes” de Irvine Welsh [aquele escocês desbocado que escreveu Trainspotting na década de 90 e depois sumiu]. Lembro que Borges recomendava que não deveríamos Ler nada que ainda não tivesse completado 100 anos. Não concordo com ele, há tanta coisa nova capaz de nos surpreender. Ler um autor contemporâneo é como conectar-se ao seu tempo. Assim me senti ao ler “As revelações...” é um livro contemporâneo que trata das relações entre os funcionários de uma repartição pública, suas lutas pelo poder, sua corrupção, seu mau-caratismo e completa falta de ética. O mais surpreendente no enredo é que o “vilão” da história, um típico conquistador alcoólatra irlandês, consegue transferir tudo que há de ruim em si, para o “mocinho”, o maior nerd do lado independente da ilha da Irlanda. Outra coisa que impressiona é a maneira como Welsh consegue vincular seus personagens ao espírito do ambiente onde estão inseridos. O livro se passa em Dublin, na Irlanda. E por mais que o nos afeiçoemos ao personagem nerd e sua luta pela ética e por uma escalada limpa numa montanha de sujeira pública, sabemos desde o princípio que vai vencer a batalha aquele que beber mais. Afinal, estamos em Dublin.
O terceiro livro que desejo recomendar foi minha ultima leitura do ano, mesmo porque só veio no natal, como presente. “O Tigre Branco” do indiano Aravind Adiga é um daqueles livros que a gente pega cheio de receio. Autor novo, vendeu milhões por todo mundo, tem uma capa muito desenhada e aquele monte de elogios de jornais do mundo afora na contracapa, este livro tinha tudo para ser mais um entre os milhares que encostei no limbo das leituras que nunca vou fazer. Li a primeira página e percorri as outras 260 em três dias. clip_image005“O Tigre Branco” nunca será um clássico da literatura. É um daqueles livros inteligentes, escritos com o esmero de quem fez um daqueles cursos americanos para escritores, mas não é um enlatado. Aravind Adiga mostra, já na sua estréia, que a literatura, se quiser sobreviver na época do Twitter e do Facebook, precisa estar em diálogo com essas mídias. A trama quase que inteira se passa dentro de um carro, onde motorista trama o assassinato do patrão. A novidade está na narrativa em primeira pessoa, que se dá em forma de uma longa confissão feita por meio de e-mails enviados por sete noites consecutivas ao primeiro ministro da China. No “Tigre Branco”, temos uma Índia muito distante daquela do Ganges mágico, ou do romântico Taj Mahal. O que vemos é um país fragmentado por seu rápido desenvolvimento, por uma democracia de mentira e pela exploração da minoria rica e estrangeira sobre a minoria indiana pobre e fácil de ser explorada. É um livro sobre exploração, empreendedorismo, assassinato e glória. É sobre a glória de um homem que mesmo tendo nascido na escuridão [pobreza], soube ascender à luz [riqueza], mesmo que para isso tenha de descobrir a parte mais escura de si mesmo. Um trecho: “Nunca antes na história da humanidade, tão poucos deveram tanto a tantos, Mr. Jiabao. Um punhado de homens, neste país, vem treinando os noventa e nove vírgula nove por cento restantes – mesmo que eles sejam fortes, talentosos, inteligentes – para viver em perpétua escravidão; uma escravidão tão forte, que se pode entregar nas mãos de um homem, a chave de sua emancipação e ele vai atira-la de volta, praguejando” [p.147].
Estão aí as três dicas. São tantos os livros possíveis e tão pouco tempo disponível. Mas esqueçam o tempo, e melhor não pensar nele. Enquanto pensamos no tempo, ele nos ultrapassa. Ler o que der, eis o meu propósito para este ano. Sem lamentação.
Pax tecum amici.
Bom 2010.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A LITERATURA E SEUS “PERSONA-GENTES”

"Madame Boavary sou eu". (Gustave Flaubert)

Donde surge um Dom Quixote, um Geraldo Viramundo ou uma Dona Benta? Aladim, Sherazade e Diadorim seriam fruto único e exclusivo do intelecto dos autores que os imortalizaram? Ou será que Holden Caufield é apenas um adolescente comum que simplesmente foi transportado para as páginas de um livro?

Nada é criado do nada. Segundo a máxima de Lavoisier, “no universo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Nem mesmo a literatura pode escapar a isso. Apesar do universo literário aparentemente ser primo fruto do gênio imaginativo dos autores, recebendo o nome de ficção nas prateleiras das livrarias e bibliotecas, não podemos esquecer de que todo texto de um autor e, consequentemente, seus personagens são parte de um universo maior do que o próprio autor. Toda pessoa é constantemente encharcada por sua época, pelas pessoas com quem convive e pelas luzes e sombras que compõem sua existência. Os autores não são diferentes. Suas obras são reflexos das ideias de sua época, das pessoas com quem tomaram parte, das viagens que fizeram e do estado de espírito pelo qual passaram pela vida. A diferença entre a transformação literária e a transformação literária reside na imaginação. O universo transforma matéria bruta em matéria bruta. O homem, por meio do intelecto é capaz de lapidar. O personagens literários, são pessoas lapidadas.

JoaquimAssim, Guimarães Rosa viajou o Sertão de Minas com um lápis e uma caderneta na mão para colher, como que numa lavoura de palavras, expressões, trejeitos e a sabedoria dos sertanejos. Nos últimos anos, tenho tido a oportunidade de viajar pelo Sertão periodicamente por causa do meu trabalho. É incrível, todo mundo no sertão carrega em si a alcunha de um personagem possível. O mérito de um Guimarães Rosa reside exatamente no reconhecimento de que os personagens literários, antes de frequentarem as páginas das novelas e romances, estão aí no mundo habitando as histórias que esperam para ser contadas.

Nem é preciso ir muito longe para se descobrir um personagem. Gustave Flaubert, quando questionado sobre sua personagem mais famosa, não hesitou em dizer: “Madame Bovary sou eu!”. Antes de se imortalizar nas páginas do “Grande Mentecapto”, Geraldo Viramundo já fazia parte do imaginário popular mineiro há décadas. Ele já estava ali, vivo no imaginário popular, pedindo para ser escrito. Há tantos personagens esperando as páginas literárias. Quantas ficções a vida de um Profeta Gentileza não seria capaz de inspirar? Quer escrever um romance sobre a máfia? Por que não convidar nosso Fernandinho Beira-Mar?

Os personagens estão aí, flutuando pelo cotidiano, vestidos de realidade. Ao escritor resta acolhê-los, travesti-los de seu imaginário, jogando-lhes o “pozinho mágico” que os transformará em literatura. Porque a literatura vem da realidade, mas ela nem de longe é a própria realidade. Literatura é o real como poderia ser, nunca como é de verdade.

Para terminar, segue um videozinho [vida longa ao youtube!] do nosso querido e verdadeiro Manuelzão, personagem mais pitoresco de nossa literatura, cujas cenas da vida ganharam luz nova diante do olhar atento do nosso maior criador de personagens. Aliás Guimarães Rosa dizia que não tinha personagens, e sim “pesonagentes”.



Pax tecum vobiscum

Abraço, e até a próxima.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

LEVANTANDO DO CHÃO

É claro que a vida é boa
e a alegria, a única indizível emoção.
(...) tenho tudo para ser feliz.
Mas acontece que sou triste.
*
"Dialética", Vinícius de Moraes
***
A vida é feita de alegrias e tristezas, não é segredo. Ninguém pode escapar a esta verdade. A felicidade e o sofrimento nos ajudam em nosso processo de humanização, por que é exatamente por estes sentimentos que nos diferenciamos da massa dos outros seres viventes e nos diferenciamos uns dos outros também. Cada um lida com sua alegria e com sua tristeza de formas diferentes. Tomemos a tristeza, ela que, mormente, tende a nos comover mais – tanto a dor nossa, quanto a dos outros sempre nos sensibiliza alguns palmos além do que qualquer alegria. Isso ocorre, talvez, pelo fato de que entendemos a alegria e a felicidade como estados em que desejamos permanecer, nos preparamos o tempo todo para viver em constante alegria. Nem sempre dá certo. A dor nos comove mais porque ela é fruto do inesperado, do não planejado, do erro, a tristeza é sempre um estado do qual desejamos escapar.

Cada um lida com sua dor e com sua tristeza de maneira diferente. Há o caso clássico daqueles que se entregam às drogas, sejam lícitas ou ilícitas, na tentativa de escapar muito rapidamente da realidade por meio de uma ilusão passageira, da qual vai se sentir cada vez mais falta e, para tantos, significa um caminho sem volta. Existem também aqueles que buscam alento no ombro de amigos, choram as dores, pedem conselhos (nunca os acolhem), expurgam seus demônios e no fim acabam por expurgar os demônios alheios também – porque todo mundo tem os seus, até o amigo que agora te consola. Outra classe é a dos solitários. Estes são os que mediante ao sofrimento, preferem volver às suas próprias entranhas, buscando na solidão (ou na companhia de si mesmo) uma resposta à sua dor.

Ainda há centenas de outras formas de lidar com a dor. Ler, escrever, dançar, jogar futebol, pular de um abismo, subir uma montanha, ir a uma festa, dar uma festa, cantar, viajar, rezar, acertar a sena, dizer “oi”, ouvir “oi”, soltar pipa, dirigir a 200 por hora... na verdade são milhares as formas de escapar do sofrimento, porém, salvo uma ou outra exceção, todas as formas são variações das três primeiras citadas. Alucinação, consolo e solidão.

A literatura, as artes plásticas, a música, a ciência e tantos outros campos de ação humano, devem algumas de suas maiores realizações à dor (seja na tentativa de descrevê-la ou na tentativa humana de escapar dela). O próprio título desta postagem é retirado de uma obra cujo tema é a dor de todo um povo, oprimido por uma minoria. “Levantando do chão” é um clássico do português Saramago.

Quando o amor era a causa da sofrimento (quase todos os sofrimentos são por amor) já tivemos clássicos literários como “O amor nos tempos do cólera”, do colombiano Gabriel Garcia Marquez; telas magníficas como “O ciúme” do norueguês Edvard Munch; e mesmo a arquitetura já produziu maravilhas planejadas em meio a lágrimas e soluços de dor, como o Taj Mahal na Índia e algumas das Pirâmides do Egito. Eis a questão vital: o que faremos de nossa dor? Nos embriagaremos ou construiremos palácios?

Para encerar, um trecho do poema “If” (em uma tradução minha, bem alternativa) de autoria do poeta britânico nascido na Índia Rudyard Kipling (1865-1936).

Se você é capaz de arriscar num único lance
Tudo o que ganhou em toda a sua vida, e perder...
E, ao perder, sem cair no planto ou em lamentos,
Resignado, voltar ao ponto de partida;
Se você é capaz de forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta uma vontade em você que ainda ordena: "Persiste!"


Pax vobiscum amicis.
Até Breve.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A CURA PELA ARTE

Eu não pinto coisas. Pinto a diferença entre coisas.

Henry Matisse



Na Folha de São Paulo de ontem (30/09/2009) foi publicado um dos mais impressionantes textos publicitários que já li. Uma página inteira, do caderno Ilustrada, nos convidando para conferir a exposição das obras do pintor francês Henry Matisse, na Pinacoteca do Estado. Mais do que uma simples propaganda, o texto é uma reflexão sobre a vida contemporânea e sua rispidez, secura e feiúra. Vivemos em um mundo que se organiza de tal forma a ser o contrário da arte, caracterizada principalmente pela leveza, liquidez e beleza. O texto da propaganda é mais do que um convite a uma exposição específica, é um convite a visitarmos à arte e nos relacionarmos por meio dela. Porque uma conversa sobre os quadros de Matisse, Picasso, Van Gogh, Portinari ou Guingnard deveria ser, cotidianamente, assunto nosso tanto quanto dinheiro, trabalho, sexo e futebol.
Segue o texto, na íntegra. Acredito que todos nós, os massacrados pela insensatez das impossíveis grandes cidades, nos identificamos com várias das situações descritas pelo anônimo autor.

***

Aos que estão cercados de cinza por todos os lados.
Aos que estão rodeados de computadores, esverdeando dentro de escritórios.
Aos que estão parados, ladeados por carros num trânsito dos infernos.
Aos que estão encaixotados dentro de elevadores.
Aos que estão isolados por paredes, curando-se de gripe suína.
Aos que estão espremidos dentro de conduções.
Aos que estão cercados de carteiras, focados numa grande lousa.
Aos que estão desaparecendo dentro de uma fina garoa.
Aos que estão sendo consumidos por sofás.
Aos que estão completamente cercados pela pressa.
Aos que estão totalmente possuídos por multiplicar dinheiro.
Aos que estão rodeados por santos e rezas.
Aos que estão absorvidos pelo desejo de vingança.
Aos que estão cercados por recém-nascidos berrando em suas pequenas camas de acrílico.
Aos que estão no meio de uma confusão que não lhes diz respeito.
Aos que estão cercados por comprimidos.
Aos que estão rodeados por assombros.
Aos que estão dominados pela fúria.
Aos que estão rodeados de enormes vitrais com um rodinho e sabão.
Aos que estão comprando a idéia de uma sociedade de consumo.
Aos que estão observando os fumantes consumindo suas ampolas fora de estabelecimentos.
Aos que estão tensos numa pequena sala que antecede a entrevista de emprego.
Aos que estão cercados de tristeza e de entes queridos num cemitério.
Aos que estão rodeados de madames mal-educadas numa lavanderia.
Aos que estão em seus casulos, protegidos por enormes cercas elétricas.
Aos que estão com a cabeça em parafuso.
Aos que estão prestes a fazer um pedido de casamento.
Aos que estão rodeados por advogados numa audiência de separação.
Aos que estão cobertos por jornais, dormindo em bancos.
Aos que estão no centro de uma roda de contas a pagar.
Aos que estão tendo seus pulmões consumidos por gases de álcool e gasolina nos postos das esquinas.
Aos que estão desistindo do convívio humano e se cercando de animais de estimação.
Aos que estão rodeados do prazer de dizer que estão faltando alguns documentos.
Aos que estão cobertos de medo do pânico.
Aos que estão querendo trocar de sexo.
Aos que estão tomados por tristes lembranças da infância.
Aos que estão sobrecarregados pelo esforço de puxar carroças pelas ruas.
Aos que estão rodeados de enormes labaredas, tentando contê-las com mangueiras.
Aos que estão cercados e sendo consumidos pelo cotidiano tolo.
Aos que estão cercados de segredos.
Aos que estão cercados pelo sentimento de culpa.
Aos que estão no centro de uma importante questão.
Aos que estão cobertos de graxa embaixo dos eixos dos veículos.
Aos que estão cercados de tapinhas nas costas.
Aos que estão acabrunhados porque levaram um pé na bunda.
Aos que estão acobertados por um disfarce.
Aos que estão cercados de teorias.
Aos que estão envoltos em mentiras.
Aos que estão cercados de bisturis, sendo abertos em mesas cirúrgicas.
Aos que estão atarefados com os afazeres domésticos.
Aos que estão cercados por gerúndios em telefones.
Aos que estão rodeados por máquinas barulhentas, perdendo a audição.
Aos que estão sedentos por sentir algo.
Aos que estão cercados por familiares, lutando contra um vício.
Aos que estão certos de não crer em nada.
Aos que estão construindo um corpo escultural e esquecendo da mente.
Aos que estão cheios de não me toques.
Aos que estão perdendo a razão.
Aos que estão cercados por um império, perdendo a noção de valores.
Aos que estão aqui somente para criticar.
Aos que estão consumidos pelo desejo de voar.
Aos que estão sucumbindo à corrupção.
Aos que estão sendo corroídos pela depressão.

A todos vocês, a luz e as cores de Matisse.

A todos vocês e mais aos esquecidos.

***
Primeira exposição individual de Matisse no Brasil
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Até 1º de novembro de 2009

***

Pax Tecum amicis