terça-feira, 7 de setembro de 2010

ARREBOL


A mais honrosa das ocupações é ser útil ao maior numero de pessoas possível.
Michel de Montaigne

O lugar
Um dia você acorda no meio de uma megalópole, como escrevi na postagem anterior, já noutro dia você acorda no meio do sertão. Em uma palavra: choque. Desaparecem o asfalto, as buzinas, todas aquelas infinitas possibilidades de encontros e programas. No lugar está a poeira da estrada, pavimentada somente por cascalho, o grito desesperado dos galos matinais e uma rotina que não permite muitas alterações. Todo dia os mesmos caminhos, as mesmas pessoas, os mesmos trabalhos. Mas não é uma rotina semelhante a da cidade, tudo é mais natural e espontâneo. A impressão que tenho é que a aqui o mundo acontece e a gente é parte dele, não é um mundo criado por nós, é um mundo do qual participamos, como coadjuvantes já muito acostumados com seus mínimos papéis.

Revoada de Concrizes, será que vai chover?
Como na cidade, há perigos. Se por um lado não é preciso trancar portas, por outro, sempre que for se vestir é preciso conferir as peças de roupa, os calçados e tudo mais para escapar de possíveis animais peçonhentos. Há muito sol e pouca água. O chão é seco e difícil de plantar. O trabalho de cultivar aqui é quase que dobrado. O outro nome do sertão é desafio. Este lugar desafia as pessoas a viverem aqui. Estamos, todo o tempo, armados para um duelo.


O povo
A primeira impressão do povo sertanejo é de que as pessoas daqui são quase tão secas quanto a terra. Poucos olhares, muitos silêncios,   prosa rara. Ledo engano. Coisas de primeiro e inocente olhar. De fato, eles são como a terra, aparentam secura, mas se você faz o mínimo esforço de cultivar, tudo nasce. Com as pessoas daqui é a mesma coisa. Só que pessoas não se cultiva, pessoas a gente cativa. E se deixa cativar por elas também. Euclides da Cunha insistia que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Verdade. Aprofundando, também é sábio, contador de “causos”, moroso, bravo, impiedoso com os inimigos, rancoroso e santo.

Sol a Sol
O dia começa cedo. A gente acorda lá pelas cinco e meia, vencidos pela insistência da orquestra de galos. Tomamos um gole de café, aproveitamos que o clima ainda está fresco e partimos para a jornada. São oito quilômetros do vilarejo até a roça que cuidamos. Eu faço o caminho de bicicleta. Na estrada, quase todos vão de moto. Ainda há os que vão a cavalo, muitos a pé e uns raros, muito raros, que tem alguma camionete, charrete. Vamos juntos, trocando cumprimentos, seguindo um trecho de estrada juntos, compartilhando o nascer do sol com passarinhos, vacas, capins, aroeiras e poeira.

Fogão da Nice, feijão e galinha d'angola
Chegando na roça, antes de começar a lida,  é  sempre bom ir nos vizinhos que tem casa por lá. Lá está o café mais reforçado. Na casa de seu Joaquim Branco, sempre tem café ralo e alguma quitanda boa. Tapioca, em geral. Na casa de dona Nice, café forte e bolacha comprada na rua. Alimentados, vamos a lida.

Trabalhamos em torno de um grande açude. Nossa missão: reflorestar. Há muito por fazer. Mais de oitenta por cento da mata já virou carvão. O que resta, segue o mesmo destino. Ali, bem próximos a água, fazemos mudas. Já temos muitas. Mudas de tudo quanto há de árvores nativas. Leucena, ipê amarelo, pau-pintado, angico, tambaqui [que eles não gostam, porque as vacas comem e abortam], cedro, sucupira, tantas. Frutíferas também. Mil mudas. Distribuição gratuita. E é bom ver que tem gente querendo plantar.

Há quem queira parar com o carvão para começar com agricultura. Poucos. Melhor que nada. Já tem gente plantando horta, onde achava que hortaliça não nascia. Dá gosto de ver. Cresce uma ponta de orgulho. Dá uma vontade de continuar.

Vamos trabalhando. Dá quatro da tarde, o sol mais baixo. Rumamos pra casa. O mesmo caminho, as mesmas pessoas, quase sem novidades. Talvez um futebol no campinho. Depois, banho frio. Jantar. Casa dos vizinhos. Muita prosa: o preço das coisas, eleições, quando vem a chuva, campeonato brasileiro e do gol perdido na pelada de agora a pouco. Falamos de tudo que cabe. Enfim, muitos "causos". Muitos mesmo. Sempre tem um bom. E quando há o silencioso consenso coletivo de que um certo caso foi bom, vamos dormir. Amanhã o dia começa cedo.
Arrebol vespertino no Sertão [05/09/10]
***
Livros que tem me ajudado
Manual do Arquiteto Descalço, Johan van Lengen
Obra Completa, Paul Verlaine
Ensaios, Michel de Montaigne
Guia Ilustrado Zahar de Astronomia,  Ian Ridpath
O livro de São Cipriano, o Bruxo
Abre a Porta: Cartilha do Povo de Deus, Diocese de Caratinga
Vidas Secas, Graciliano Ramos




***
Abraços,
Luz na Caminhada.


30 comentários:

  1. Adorei as dicas de leitura! Vou passar pro meu irmão! ele curte o gênero!
    Beijão!
    Sucesso!

    ResponderExcluir
  2. Olá... Li o texto anterior e este... Gostei da análise que vc fez... No final das coisas tudo tem seu lado bom e seu lado ruim... O que intensifica um ou outro somos nós mesmos... Mas eu ainda prefiro a imagem da metrópole! rsrsrrs

    Abraço!

    www.brincandodefazerpiada.blogspot.com

    ResponderExcluir
  3. Olá,
    adorei a análise, os livros indicados.
    Parece que eles são bons, darei uma olhada.

    :)

    ResponderExcluir
  4. Bem, há pessoas que gostem e há pessoas que não. Sei que é importante esse contato com a natureza e tudo mais, mas eu não consigo viver sem tecnologia. Não gosto de mato, fato.

    http://cerebro-musical.blogspot.com

    ResponderExcluir
  5. Tudo isso é uma delícia!
    Oh belezinha!

    Ótimas indicações...me vi em todos eles.

    Abs,
    Fernando Piovezam
    seuanonimo.blogspot.com

    ResponderExcluir
  6. Acho que tudo tem sua importância...
    Parabéns!!!

    ResponderExcluir
  7. Muitoo bom seu blog, gostei de verdade, sua maneira de escrever e muito boa, dinâmica.. enfim.. Adorei.

    Beijos!

    http://entrelinnhas.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  8. Eu gosto desses dois mundos, primeiro porque nasci num interior do interior e cresci nesse meio. Segundo, porque a cidade grande me fascina e cada a dia descubro coisas novas e interessantes.

    Se eu tivesse que escolher entre os dois lugares, eu preferia não escolher nada.

    Abraços.

    ResponderExcluir
  9. Vendo você falar das diferenças da metropole e do sertão fica claro o Brasil de diferença que vivemos, de algum modo todos os cenarios abrigam um certo perigo.
    Que legal o trabalho que vc esta realizando no sertão.

    Sorte no Bolg

    http://identidade-cultural.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  10. otimas indicaçoes, gostei mto tbm da analise feita :)

    parabens e sucesso



    http://niddotiras.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  11. "Só que pessoas não se cultiva, pessoas a gente cativa."

    Com seu texto vc cultivou em mim algo que há muito tempo eu não sentia por aí. Em suas palavras deu para se notar a simplicidade de um povo que tem tanto a dar e muito mais a receber.

    ADOREI seu blog, passo aqui mais vezes!
    Vou te seguir. o/

    ResponderExcluir
  12. Gostei do texto e das dicas sobre os livros.

    ResponderExcluir
  13. acho muito legal a forma de vida no campo assim como você descreveu mas acho que surtaria num lugar desse! haha :x
    muito bom o textom parabens :)

    http://medrops.com

    ResponderExcluir
  14. é uma delícia estar numca realidade tão diferente, poder observar o mundo a partir de uma outra perspectiva. Ver que tudo não é essa loucura da nossa vida urbana.

    Já escrevi um post sobre isso, e a sensação é que o tempo não passa. Na verdade, o que ocorre é que temos mais liberdade e sensação de tempo. O que aqui no nosso "mundo real" sempre falta...

    Belo post.

    Se puder:
    http://apenas-daniel.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  15. Excelente as dicas, parabéns pelo post e pelo blog.

    ResponderExcluir
  16. Ual você escreve muito , mais muito bem . Darei uma olhada nos livros que indicou.Adoro ler.
    Seu texto está muito bom *-*


    http://dreamsofyorrana.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  17. Gostei bastante do texto, vou ver se consigo algum dos livros que vocês indicou. Parabéns pelo blog. Abraço.

    ResponderExcluir
  18. gostei do texto, sempre adorei literatura que é do sertão ou que fala do sertão...sou viciado

    http://leandroferreirao.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  19. tambem li o livro de são cipriano


    http://universovonserran.blogspot.com/
    devolvo seguidos e comentarios !



    devido a calotes..seguirei e comentareios que me seguirem e comentarem

    ResponderExcluir
  20. Apesar de um pouco grande até que o texto ta bom! ei amigão, acho que vc ta me devendo uma visita em www.cinemeirosnews.blogspot.com passe lá e evite o calote ok :)

    ResponderExcluir
  21. Muito legal seu ponto de vista e dicas de leitura, parecem interessantes mas não curto esse modo de vida, prefiro a vida cercada por modernidades tecologicas!

    ResponderExcluir
  22. Gostei muito do seu ponto de vista e das indicações de leitura mas prefiro viver rodeada de modernas tecologias.

    ResponderExcluir
  23. meu deus, que lindo texto ! parabééns, você escreve super bem. .

    ResponderExcluir
  24. O texto é grande, mas valeu a pena perder um tempinho lendo.
    Muito bom!

    Casa do Baralho
    http://casa-do-baralho.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  25. Nada como a vida rural. Bom blog, abraço!

    ResponderExcluir
  26. Você mora mesmo,na roça???
    Adorei seu texto até fiquei com vontade de ir pra roça.
    Muito obrigado pela visita no blog,gostei muito do seu comentario.

    ResponderExcluir
  27. Muito bom o post, lindas fotos... abraços e parabéns pelo blog, está muito bonito... valeu!

    ResponderExcluir
  28. Uau...
    Então esse sertão existe mesmo...rs
    Onde o grosso do sistema não consegue se infiltrar a essência do lugar ainda se perdura hein.

    Que rotina puxada! em quesito de desânimo, acho que nada se compara a rotina sem coração, expressada no seu texto anterior...

    essa deve ser um baita experiência mesmo, li Vidas Secas, é um pau na 'vida conforto', gosto muito de graciliano, sempre me puxa pras histórias. Um outro mundo...

    Estou torcendo muito por seu trabalho ai!

    ResponderExcluir

Comente à vontade, contanto que prime pelo bom uso do imperativo categórico Kantiano: "Não faça com os outros que aquilo que você não gostaria que fosse feito com você";. Assim Seja. Pelos Séculos dos Séculos. Amém.