quinta-feira, 28 de julho de 2011

CONEXÃO BSB: INFERNO DE AZULEJOS

Azulejos de Athos Bulcão, Aeroporto JK  [Foto do Celular]
Odeio lugares onde não estamos em lugar nenhum. Aeroportos, principalmente. O de Brasília, mais que todos os outros. Quem me conhece ou lê sabe, não sou do tipo negativista. Prefiro escrever sobre o que gosto, às vezes falo sobre alguma angústia, raramente sobre o que não me agrada. O meu desgosto prefiro calar. Mas o Aeroporto JK, que os cartões de embarque denominam "BSB", acaba de despertar em mim uma espécie de ódio ancestral. Aquela coisa que sentimos somente quando irritados ao extremo, seguidamente, pela mesma pessoa (no caso, lugar).

Motivo? Vários. Uma chegada a contra gosto. Duas despedidas traumáticas, sendo uma com direito a coração partido. Intermináveis horas de espera devido a conexões, atrasos. Uma aterrissagem escandalosamente mal executada pelo piloto. Os azulejos nonsense do Athos Bulcão. E uma série de outros infortúnios que não saberia descrever sem diminuir o nível da linguagem. Para completar, o cinema, único espaço passível de boa recordação aqui, não funciona mais. E como se não bastasse tudo isso, a Laselva daqui tá mais pra banca de jornal que pra livraria.

Se o inferno é o pior lugar que alguém pode estar, eu já conheço o meu. E quando no fim dos meus dias a soma das minhas ações pender pro lado negativo, receio que Deus já sabe para onde me enviar.

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Eis o milagre enquanto escrevo, acabam de chamar o 1589, com destino ao SDU. É o meu.

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Dos males o menor, enquanto esperava consegui ler todo o "Elogio à madrasta", do Mario Vargas Llosa. Em uma palavra, angelical. Leia.

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Desculpem-me qualquer erro que fira mui gravemente o idioma de Camões, é que este texto foi escrito e postado do meu bom e velho Nokia e72. Depois corrijo os absurdos. Despeço-me, finalmente, acomodado na poltrona do avião. Parece que já vão fechar as portas. Câmbio e desligo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

NO PRINCÍPIO ERA O VERBO: SOBRE A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA FRASE DE UM TEXTO



No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Início do Evangelho de João

Todas as experiências humanas são passíveis de se tornarem grandes textos. Chega a ser desesperadora a intuição de que cada instante vivido pode ser o princípio de uma obra prima literária. Todos os escritores do mundo, desde blogueiros até catedráticos de respeitadíssimas academias, estão repletos de ideias geniais para escrever e publicar. Mas nem tudo vira texto, nem tudo que vira texto é publicado e nem tudo que é publicado é genial. Quase nada é. Por quê? Haverá um “por quê”? Não creio.

Quando penso nos textos geniais que imaginei e não escrevi, só uma coisa me vem à cabeça: não escrevi porque não comecei. Às vezes creio que sofro de algo como que uma “síndrome do não-começo”. Quantos textos deixei de escrever porque não soube começar! Começar é difícil, é um tal de escrever a apagar que não acaba. Isso porque, de todas as linhas de um texto, seja ele um calhamaço de 1000 paginas ou os 140 caracteres de um tweet, nada é mais dispendioso do que a primeira frase. Há teses e mais teses, engavetadas nas bancas de doutoramento literário, sobre a arte de escrever a primeira página de um livro. Da primeira página depende muita coisa, mas ainda acho a primeira frase mais dolorosa para quem escreve e mais definitiva para quem lê. Ninguém termina a primeira pagina sem se apaixonar pela primeira frase. Numa época de leitores impacientes, a primeira frase é quase uma cantada. Seu poder de sedução tem de ser forte, para que o leitor siga adiante.

“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados.” Assim, Gabriel Garcia Marquez inicia de forma arrebatadora um de seus clássicos, O Amor nos tempos do cólera. Se há uma frase que pode resumir o livro aí está ela. E como alguém pode deixar de ler todo o livro depois de sentir o aroma dessas amêndoas?

Nas portas há mais detalhes do que se imagina.
Catedral de Amiens, abril de 2010

Muitas vezes, a primeira frase é o motivo de paixão desenfreada ou de ódio extremo. Poucas coisas podem revoltar tanto um leitor quanto uma primeira frase de 10 linhas, como José Saramago ousou em O Evangelho segundo Jesus Cristo. Bom, a Saramago tudo perdoamos. Não que a primeira frase não possa ser longa, até hoje guardo comigo, o começo de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger: “Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso”. É como se Salinger estivesse dizendo “escrevo como quero, quando quero e pra quem quiser ler”, todo um estilo está delineado nesta primeira frase. Poucos são capazes de contar quem são logo na entrada.

Talvez o maior mestre na alquimia das primeiras frases seja Franz Kafka. Toda sua obra é um convite à reflexão sobre o absurdo da existência e não há nada mais absurdo [no melhor sentido da palavra] na história da literatura do que as primeiras frases de Kafka. Tomemos o início de suas obras mais conhecidas.

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” [A metamorfose] // “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” [O Processo]

Não há motivos nem justificação, somente fatos. Como a vida. Isto é Kafka, uma espécie de sinceridade exagerada desde a primeira linha.

Dizem, a primeira impressão é a que fica. Quanto tempo dura a primeira impressão na literatura? Varia de autor para autor, de leitor para leitor. Com diria Drummond, escrever e ler é “lutar com palavras”.  Talvez o segredo, para quem escreve, seja manter desperto o leitor, frase por frase, desde a primeira.

A primeira frase, pedra angular de nossa escritura, a mais difícil de ser esculpida. Porta. Deixemos aberta.