quinta-feira, 1 de maio de 2008

AS "BARROCOLAGENS" DE AFFONSO ÁVILA

Dúvida não há, Affonso Ávila, mineiro da capital, é um dos mais importantes poetas da segunda metade do séc. XX. Este inveterado vanguardista, deveras não faz parte do primeiro contingente de poetas mais conhecidos no Brasil. Isso provavelmente se deve à complexidade poética atingida por sua obra. Por não se conformar com os modelos prontos, durante muito tempo, sua poesia pareceu estranha aos olhos acostumados às rimas fáceis de poetas antigos. O novo sempre dói a vista.

Desde o lançamento de O açude e sonetos da descoberta (1953) até o recente Cantigas do falso Alfonso el sabio (2006) sua poesia sempre se distinguiu pela capacidade reinventiva, tanto da sua própria obra como da de outros grandes literatos de épocas passadas.

barrocoDa vasta obra poética de Affonso Ávila, destacaremos aqui suas Barrocolagens (1981). Nestas "colagens barrocas", o autor remonta fragmentos textuais de importantes figuras do período Barroco, por meio de poemas discursivos. Assim, lançando mão de uma operação quase milagrosa de palavras soltas em páginas antigas, Antonio Vieira, Luís de Góngorra, Juan de la Cruz e outros tantos passam a dialogar poéticamente sob a atenta mediação de Affonso Ávila, cujo maior mérito reside na capacidade de unir o espírito científico do pesquisador ao espírito criador do poeta.

Nas Barrocolagens, o passado perde a categoria espectral que lhe foi relegada pela mentalidade ultra-imediatista dos tempos atuais - onde o passado é apenas um fantasma que nos assombra - e ganha natureza criativa sonhada por J. L. Borges - aqui o passado é visto como precursor do futuro.

Conforme disse Tristão de Athayde, "Affonso Ávila é uma daquelas raras personalidades cuja vocação está imersa na capacidade de abrir novos rumos para a humanidade". E as Barrocolagens não escapam a essa máxima. Seus poemas, encharcados de um passado quase esquecido por nós, são capazes de nos sinalizar bons caminhos para o futuro.

Segue a primeira parte do poema "Os remédios do amor e o amor sem remédios", na qual se encontra o primeiro de quatro remédios para o amor. Se quiser ver os outros três, vide as Barrocolagens do Affonso! (p. 147-148)

Obs: O texto em "caixa alta", a estranha grafia de algumas palavras e a organização singular dos parágrafos configuram-se como herança da versão original do texto de 1981 .

***
1
OS REMÉDIOS DO AMOR E O AMOR SEM REMÉDIOS SÃO AS
QUATRO COISAS E UMA SÓ
O PRIMEIRO REMÉDIO É o TEMPO
TUDO CURA O TEMPO, TUDO FAZ ESQUECER, TUDO GASTA,
TUDO DIGERE, TUDO ACABA,
ATREVE-SE O TEMPO A COLUNAS DE MÁRMORE, QUANTO
MAIS A CORAÇÕES DE CERA?
SÃO AS AFEIÇÕES COMO AS VIDAS, QUE NÃO HÁ MAIS CERTO
SINAL DE HAVEREM DE DURAR POUCO, QUE TEREM DURADO MUITO
SÃO COMO AS LINHAS QUE PARTEM DO CENTRO PARA A
CIRCUNFERÊNCIA, QUE QUANTO MAIS CONTINUADAS,
TANTO MENOS UNIDAS
POR ISSO OS ANTIGOS SABIDAMENTE PINTARAM O AMOR
MENINO, PORQUE NÃO HÁ AMOR TÃO ROBUSTO QUE
CHEGUE A SER VELHO
DE TODOS OS INSTRUMENTOS COM QUE O ARMOU A
NATUREZA, O DESARMA O TEMPO
AFROUXA-LHE O ARCO, COM QUE JÁ NÃO ATIRA
EMBOTA-LHE AS SETAS, COM QUE JÁ NÃO FERE
ABRE-LHE OS OLHOS, COM QUE VÊ O QUE NÃO VIA
E FAZ-LHE CRESCER AS ASAS, COM QUE VOA E FOGE
Y SOLO DE EL AMOR QUEDA EL VENENO.

***
Pax tecum amici!
No próximo post talvez nos visite Henriqueta Lisboa. Talvez.