sábado, 2 de janeiro de 2010

MÍNIMA RESTROSPECTIVA LITERÁRIA [2009]

Em 2009 não tive lá muito tempo para ler. É triste dizer isso, porém é a dura realidade de quem apenas sonha ser um leitor em tempo integral. Acho que ninguém é isso, leitor em tempo integral, nem mesmo aquelas pessoas abençoadas as quais foram confiadas nossas bibliotecas. Quando adolescente sonhava ser bibliotecário, vivia em bibliotecas tentando desvendar os mistérios daqueles números e letras pregados com papel adesivo na lateral dos livros. Bastava olhar para o meu quarto para saber que eu nunca seria bibliotecário. Outras paixões vieram. A filosofia, a educação, a religião e, por fim, a área social. Todas essas atividades exigiram que eu permanecesse em constante estado de leitura. Tinha de ler sempre, mas tudo muito voltado para o trabalho, quase nunca podia me dedicar a minha verdadeira paixão, a literatura.
No ano passado, bati meu recorde negativo de leituras literárias. Li apenas cinco livros completos [para quem lia pelo menos dez por ano, é uma queda considerável]. E esta postagem é para fazer o resumo de minha pobreza. Como disse li cinco, mas só posso recomendar três. Dois deles não ousarei recomendar. Saramago me decepcionou em seu elogiado “A viagem do elefante”, achei uma história arrastada e sem brilho [acho que isso acontece porque a gente sempre espera muito de alguém que escreveu mais de uma mão cheia de clássicos]. Já a releitura do “Ulisses” de James Joyce outra vez me causou tanto espanto ante àquelas geniais descrições do nada, que não consigo escapar do sentimento de impotência para escrever sobre. Restaram-me três leituras para comentar, dois romances e um livro de poesia.
Comecemos pela poesia. No natal passado ganhei uma edição bilíngue do surpreendente “Os animais evangélicos e outros poemas” de D. H. Lawrence. clip_image001O livro de uma coerência literária que raras vezes notei em um volume de poesias. É como se as dezenas de poemas que ali estão, quisessem nos contar uma única história. A história do acelerado progresso da humanidade no século XIX, sobre como esse progresso tecnológico, político e social tem nos tornado cada vez mais autônomos e consequentemente sozinhos. Toda a tecnologia, que deveria servir para nos aproximar, diminuir fronteiras melhorar nossa vida, tem feito exatamente o contrário. Cada vez nos relacionamos menos, e quando nos relacionamos é tudo tão vazio. Chegamos ao nível no qual das relações pessoais são quase desnecessárias, e quando acontecem, na maioria das vezes, são conflituosas e fugazes. Essa crítica é tão comum que todos já estamos cansados dela. O que impressiona na obra de Lawrence é que ele não se posiciona contra o modelo atual de sociedade, ele também não o admira. Ele apenas acredita que é uma escolha coletiva que fizemos. Seus poemas, repletos de metáforas e imagens desconcertantes, “da minha parte, prefiro que meu coração se despedace” [p. 51] ou “todos os frutos tem o seu segredo” [p.59], mostram que a poesia também pode ser realista, contundente e sem o romantismo da esperança-cega. Recomendo “os animais evangélicos e outros poemas”, mas com um alerta: prepara-se para perceber o quão “demasiado pequeno és ante ao vento que te arrasta” [p. 47]. Que vento é esse? O vento do tempo. Não o tempo das horas, dos meses e dos anos, mas o tempo que passa sem que possamos contar, aquele tempo do qual sempre sentimos falta e nunca sabemos qual é.
clip_image003O segundo livro que completei no ano foi “As revelações picantes dos grandes chefes” de Irvine Welsh [aquele escocês desbocado que escreveu Trainspotting na década de 90 e depois sumiu]. Lembro que Borges recomendava que não deveríamos Ler nada que ainda não tivesse completado 100 anos. Não concordo com ele, há tanta coisa nova capaz de nos surpreender. Ler um autor contemporâneo é como conectar-se ao seu tempo. Assim me senti ao ler “As revelações...” é um livro contemporâneo que trata das relações entre os funcionários de uma repartição pública, suas lutas pelo poder, sua corrupção, seu mau-caratismo e completa falta de ética. O mais surpreendente no enredo é que o “vilão” da história, um típico conquistador alcoólatra irlandês, consegue transferir tudo que há de ruim em si, para o “mocinho”, o maior nerd do lado independente da ilha da Irlanda. Outra coisa que impressiona é a maneira como Welsh consegue vincular seus personagens ao espírito do ambiente onde estão inseridos. O livro se passa em Dublin, na Irlanda. E por mais que o nos afeiçoemos ao personagem nerd e sua luta pela ética e por uma escalada limpa numa montanha de sujeira pública, sabemos desde o princípio que vai vencer a batalha aquele que beber mais. Afinal, estamos em Dublin.
O terceiro livro que desejo recomendar foi minha ultima leitura do ano, mesmo porque só veio no natal, como presente. “O Tigre Branco” do indiano Aravind Adiga é um daqueles livros que a gente pega cheio de receio. Autor novo, vendeu milhões por todo mundo, tem uma capa muito desenhada e aquele monte de elogios de jornais do mundo afora na contracapa, este livro tinha tudo para ser mais um entre os milhares que encostei no limbo das leituras que nunca vou fazer. Li a primeira página e percorri as outras 260 em três dias. clip_image005“O Tigre Branco” nunca será um clássico da literatura. É um daqueles livros inteligentes, escritos com o esmero de quem fez um daqueles cursos americanos para escritores, mas não é um enlatado. Aravind Adiga mostra, já na sua estréia, que a literatura, se quiser sobreviver na época do Twitter e do Facebook, precisa estar em diálogo com essas mídias. A trama quase que inteira se passa dentro de um carro, onde motorista trama o assassinato do patrão. A novidade está na narrativa em primeira pessoa, que se dá em forma de uma longa confissão feita por meio de e-mails enviados por sete noites consecutivas ao primeiro ministro da China. No “Tigre Branco”, temos uma Índia muito distante daquela do Ganges mágico, ou do romântico Taj Mahal. O que vemos é um país fragmentado por seu rápido desenvolvimento, por uma democracia de mentira e pela exploração da minoria rica e estrangeira sobre a minoria indiana pobre e fácil de ser explorada. É um livro sobre exploração, empreendedorismo, assassinato e glória. É sobre a glória de um homem que mesmo tendo nascido na escuridão [pobreza], soube ascender à luz [riqueza], mesmo que para isso tenha de descobrir a parte mais escura de si mesmo. Um trecho: “Nunca antes na história da humanidade, tão poucos deveram tanto a tantos, Mr. Jiabao. Um punhado de homens, neste país, vem treinando os noventa e nove vírgula nove por cento restantes – mesmo que eles sejam fortes, talentosos, inteligentes – para viver em perpétua escravidão; uma escravidão tão forte, que se pode entregar nas mãos de um homem, a chave de sua emancipação e ele vai atira-la de volta, praguejando” [p.147].
Estão aí as três dicas. São tantos os livros possíveis e tão pouco tempo disponível. Mas esqueçam o tempo, e melhor não pensar nele. Enquanto pensamos no tempo, ele nos ultrapassa. Ler o que der, eis o meu propósito para este ano. Sem lamentação.
Pax tecum amici.
Bom 2010.