segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A LITERATURA E SEUS “PERSONA-GENTES”

"Madame Boavary sou eu". (Gustave Flaubert)

Donde surge um Dom Quixote, um Geraldo Viramundo ou uma Dona Benta? Aladim, Sherazade e Diadorim seriam fruto único e exclusivo do intelecto dos autores que os imortalizaram? Ou será que Holden Caufield é apenas um adolescente comum que simplesmente foi transportado para as páginas de um livro?

Nada é criado do nada. Segundo a máxima de Lavoisier, “no universo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Nem mesmo a literatura pode escapar a isso. Apesar do universo literário aparentemente ser primo fruto do gênio imaginativo dos autores, recebendo o nome de ficção nas prateleiras das livrarias e bibliotecas, não podemos esquecer de que todo texto de um autor e, consequentemente, seus personagens são parte de um universo maior do que o próprio autor. Toda pessoa é constantemente encharcada por sua época, pelas pessoas com quem convive e pelas luzes e sombras que compõem sua existência. Os autores não são diferentes. Suas obras são reflexos das ideias de sua época, das pessoas com quem tomaram parte, das viagens que fizeram e do estado de espírito pelo qual passaram pela vida. A diferença entre a transformação literária e a transformação literária reside na imaginação. O universo transforma matéria bruta em matéria bruta. O homem, por meio do intelecto é capaz de lapidar. O personagens literários, são pessoas lapidadas.

JoaquimAssim, Guimarães Rosa viajou o Sertão de Minas com um lápis e uma caderneta na mão para colher, como que numa lavoura de palavras, expressões, trejeitos e a sabedoria dos sertanejos. Nos últimos anos, tenho tido a oportunidade de viajar pelo Sertão periodicamente por causa do meu trabalho. É incrível, todo mundo no sertão carrega em si a alcunha de um personagem possível. O mérito de um Guimarães Rosa reside exatamente no reconhecimento de que os personagens literários, antes de frequentarem as páginas das novelas e romances, estão aí no mundo habitando as histórias que esperam para ser contadas.

Nem é preciso ir muito longe para se descobrir um personagem. Gustave Flaubert, quando questionado sobre sua personagem mais famosa, não hesitou em dizer: “Madame Bovary sou eu!”. Antes de se imortalizar nas páginas do “Grande Mentecapto”, Geraldo Viramundo já fazia parte do imaginário popular mineiro há décadas. Ele já estava ali, vivo no imaginário popular, pedindo para ser escrito. Há tantos personagens esperando as páginas literárias. Quantas ficções a vida de um Profeta Gentileza não seria capaz de inspirar? Quer escrever um romance sobre a máfia? Por que não convidar nosso Fernandinho Beira-Mar?

Os personagens estão aí, flutuando pelo cotidiano, vestidos de realidade. Ao escritor resta acolhê-los, travesti-los de seu imaginário, jogando-lhes o “pozinho mágico” que os transformará em literatura. Porque a literatura vem da realidade, mas ela nem de longe é a própria realidade. Literatura é o real como poderia ser, nunca como é de verdade.

Para terminar, segue um videozinho [vida longa ao youtube!] do nosso querido e verdadeiro Manuelzão, personagem mais pitoresco de nossa literatura, cujas cenas da vida ganharam luz nova diante do olhar atento do nosso maior criador de personagens. Aliás Guimarães Rosa dizia que não tinha personagens, e sim “pesonagentes”.



Pax tecum vobiscum

Abraço, e até a próxima.